FOTO DO ALMOÇO ANUAL

FOTO DO ALMOÇO ANUAL
A VELHA MALTA

sexta-feira, 10 de junho de 2011

ENTREVISTA A AMADEU BAPTISTA





CE – A escrita de Amadeu Baptista é sobretudo no âmbito da poesia…
AB – Sim, eu só escrevo poesia.
CE – Poder-nos-á descrever um pouco a poesia de Amadeu Baptista?
AB – Sou indisciplinador de mim próprio. Todos os dias me obrigo a ver as coisas de maneira diferente, numa tentativa de estar sempre “do contra” para tirar o maior partido de cada coisa.
CE – Para romper com a norma e tentar enxergar a realidade por um prisma diferente?
AB – Para ver o contraditório. As coisas são sempre aquilo que são e o que não são.
CE – Vê , então as realidades de uma forma dual?
AB – Ou mais…Quanto mais faces tiver o cubo, maior a sua sétima face.
CE – E será, portanto, mais rica a síntese final?
AB – É isso.
CE – E a próxima publicação?
AB – Nunca programo muito o que vou fazer a seguir. Mas estou muito envolvido num projecto a que me propus. É um projecto muito vasto, ligado à área das artes, à pintura, à escultura mais quinhentos poemas como baliza final.
CE – Consegue fazer uma síntese da evolução da sua poesia?
AB – Está nos Antecedentes Criminais! É uma antologia da minha poesia desde 1982 até 2007…São 25 anos de actividade literária…
Em relação à sua pergunta, todas as pessoas evoluem não só porque as coordenadas se alteram, a procura também, mas sobretudo devido a um intenso e persistente trabalho…
Quanto à temática, é aquela que, classicamente, atribuímos à poesia: o amor e a morte, Eros e Tánatos, o sexo e a libido…A Vida, em suma. Ou, em sumo…
CE – Uma frase que defina a sua poesia?
AB – Não tenho uma definição. Quando tiver deixarei de escrever. E, agora, vou entrevistá-la a si…já escreveu alguma coisa?
CE – (risos) Nada que valha a pena publicar…Só lamechices que já foram para o lixo!
AB- O segredo é o distanciamento, acompanhado do conhecimento. Não é preciso estar perto das coisas para o dizer o que é ou como são, mas apenas suficientemente próximo para depois ter o conhecimento. É necessária a acutilância e um pouco de sobranceria…
CE – E vai publicar algo em breve?
AB – Neste momento, tenho, talvez, quatro livros a serem publicados até ao final de Maio. Mas o que me interessa não é a publicação. É escrever o livro seguinte. Isso é que é preocupante.
CE – E quais são os títulos?
AB – Bom, são O Bosque Cintilante que ganhou o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, Outros Domínios, que ganhou o Prémio Literário Florbela Espanca; Poemas de Caravaggio, Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire e Sobre as Imagens que ganhou o Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica 2008. Tudo isto num espaço de seis meses…



Recolhida de CE por





JBS

quinta-feira, 9 de junho de 2011

CRÓNICA




ANTÓNIO LOBO ANTUNES


O mundo como vontade e representação


Hoje almocei com as minhas três filhas e, de súbito, um arrepio de pavor por elas. Ontem jantei com os meus irmãos e, de súbito, um arrepio de pavor por eles. Há tanta coisa que prefiro não saber. Um bêbado a cantar lá fora. Porque é que o vinho não fica bêbado dentro da garrafa, perguntava não sei quem


Contra quem gritam os pavões? No Castelo de São Jorge gritavam contra a noite, no Campo de Santana gritavam contra a noite, em casa do meu avô gritavam contra a noite, e não eram gritos de pássaros, eram gritos de pessoas feridas na alma, cujo medo protestava ainda. Contra quem gritam os corvos no leste da Europa, contra quem gritam as gaivotas de Portugal? E os albatrozes? E as andorinhas-do-mar? Contra quem gritam, em silêncio, os móveis e os meninos de África correndo na picada? Contra a noite também, contra o absurdo violento da noite. As catatuas gritam contra si mesmas. Eu grito contra a minha alma pecadora. Por que razão me comove um bebé a chorar? Devo ter vertido muitas lágrimas, ainda verto algumas, invisíveis. Talvez nem eu dê por elas, às vezes. Talvez não queira dar por elas mas outro dia, ao olhar um homem que conheço, senti-as descerem-me sob a pele:


- O que se passa consigo?


e um trejeito da boca


- Não estou bem


um trejeito do corpo calado


- Não estou bem


e não posso tocar-lhe para que não se aperceba da minha tristeza. Um soldado a quem uma anti-pessoal levou a perna:


- Não contem ao meu pai


e não conto ao teu pai, descansa, fica entre nós. Em lugar da perna um coto que não pára de sangrar. Contra quem grita o coto? Contra quem grita outro soldado, de joelhos ao pé dele?


- Matámos as galinhas todas


diziam os catangueses pelo rádio, matámos as galinhas todas. Galinhas significavam galinhas e mulheres. Alferes José Luís Henriques, valente como as armas, José Luís Cristóvão Henriques, tu contavas isto a gritar. Como os pavões, os corvos, as gaivotas e as andorinhas-do-mar. Contra quem grita o mar? Dá-me todas as lágrimas do mar, pedia o chileno, irmãzinha dá-me todas as lágrimas do mar. As do Zé Francisco na morte da filha. As dos camponeses da Beira na morte de um bezerro. Contra quem grita o porco que todos os anos matavam no pátio do avô, com um alguidar por baixo? As pestanas transparentes sem descanso, as patas amarradas que se torciam, torciam. Amarram-se as patas de trás, amarram-se as patas da frente e a faca a rasgar o pescoço. O Marciano para mim


- Não espreite menino


ele que acabava os passarinhos estrangulando-os com dois dedos, primeiro agitados, depois quietos. Contra quem não gritam os passarinhos, Marciano? O seu quarto cheirava a tabaco frio, a comida fria, a demasiada gente sendo ele um só. Foi-se embora, perdi-o. O que não perdi eu, pessoas, casas, amigos? Zé, Ernesto, Eugénio, Acácio. Eugénio de Andrade de manta nos joelhos no seu sofá de Serrúbia, vinho fino e bolinhos. Poesia, poesia, como és simples e tu vens, como nasces da harmonia das formas que nunca tens: foi outro quem disse isto, chorando contra quem? Eu com o Zé no aeroporto e o Ernesto a partir de avião para a América, em busca de uma cura que ele sabia impossível. Arrastava-se do sofá à mesa de jantar, sem uma queixa. Quase não conversávamos. Para quê? E arranjava maneira de sorrir de vez em quando. Fizeram-te uma homenagem anos depois, estive lá. Até disse coisas de ti a um microfone. Hoje almocei com as minhas três filhas e, de súbito, um arrepio de pavor por elas. Ontem jantei com os meus irmãos, e, de súbito, um arrepio de pavor por eles. Há tanta coisa que prefiro não saber. Um bêbado a cantar lá fora. Porque é que o vinho não fica bêbado dentro da garrafa, perguntava não sei quem. E a lembrança dos pavões de novo, dos gritos no Castelo. Os pobres comeram os pavões e os cisnes do Campo de Santana. No escuro, no meio dos passadores de droga e dos rapazes do esticão. O que me tentou assaltar no Jardim D. Pedro V, a fitar-me de banda, ao longe, e eu a fazer-me parvo até que começou a vir e agora, de repente, as mulheres de aluguer que traziam um tijolo dos grandes na carteira: uma volta com a pega e o tijolo, contra as partes, a dobrar o esperto em dois. Nem necessitavam de correr, elas, afastavam-se devagarinho depois, imperiais. Mostravam-me o tijolo


- Dou-lhes com isto


ou antes


- Dou-lhes com isto e trigo limpo, farinha Amparo


de maneira que fui aprendendo os truques com os anos. Aposto que o rapaz do esticão demorou tempo a esquecer-me. Encontrei-o outra vez no mesmo Jardim D. Pedro V, à caça. Passou-me o olho e ganhou lume no cu.


- Não espreite, menino


pedia o Marciano


- Não espreite


eu, em tantas alturas, um porco a sangrar, um porco não muito grande, não muito gordo, a sangrar:


- Não contem ao meu pai


e, se quiserem contar, agora nem no cemitério o acham. Onde pára o seu silêncio, senhor? A mão dele a explicar


- Bem vês


que era um dos seus começos de discurso favoritos. Bem vejo o quê, senhor? Nem nuvens, é tarde, os pavões dormem no Castelo. Corvos de São Vicente a pintarem tudo de negro, andorinhas-do-mar rente à espuma. Sento-me na praia em que luzes de barcos de pesca, distantes, fixas. Como uma aldeia alentejana muito no fim da estrada, como Beja depois do crepúsculo. Ó Beja, terrível Beja, terra da minha desgraça. E, enquanto isto, os meninos de África continuam a correr na picada. Jamais vi alguém a brincar tão a sério. Olhos profundos, graves. Reflectindo o quê? Por favor metam aqui um final feliz.


Retirado da VISÃO, por



JBS

terça-feira, 7 de junho de 2011

POESIA DE AMADEU BAPTSTA



FRIDA KAHLO E OS DESENHOS DO MUNDO

Creio que a adolescência tocou o teu rosto
para fazer crescer a perturbação ainda hoje visível no olhar, o modo surpreendente
como os cabelos deslizam para a brancura
são a prova inequívoca do enigma, o vaticínio marca-te no rosto um pouco dessa tristeza avassaladora e ténue de quem atravessa
uma cidade para se perder no instante
de uma fonte, mão que toca a cor imponderável
das coisas para extrair do passado
uma medida de ferro, um fio de oiro,
um pássaro azul. Vejo-te passar nesse navio longínquo que há-de um dia pertencer ao vento, decifro o reflexo de um brilho que te sobe
para os ombros como o frágil ramo
de uma árvore vivaz e suavemente flutua
sobre a transparência para identificar o anjo
que te precede, um pouco após o sinal redutor da inocência e a infinita doçura de quem foi perseguido e arrancou das entranhas
subtílimos silêncios para resistir ao assédio
das pedras, os poderes aniquiladores, o rumo das coisas quando a tempestade triunfou
sobre a tempestade e a memória entregou
o resgate de não haver resgate.
Deste lugar te avisto e avisto o mar,
esta passagem conduz ao indizível encontro com as estrelas, sol e noite, os mínimos percalços que a natureza desoculta das sombras e faz explodir em fragmentos translúcidos
onde se inscreve a mensagem,
uma última notícia do paraíso perdido
em que um traço de luz corresponde
ao augúrio da brisa, a voz secreta que nos une
e separa, a palavra onde o deslumbramento
é um labirinto que pela alucinação
percorremos no incontornável fulgor
de um momento perpétuo.

O autor - Nasceu no Porto (1953) e vive em Lisboa. Escreveu, entre outros, “Passagens secretas”, “Arte do regresso”, “O claro interior”. Traduzido em francês, inglês, italiano, hebraico, romeno, espanhol e holandês.